Calatonia e toques sutis: o método


Fernando Cortese

(capítulo do livro Calatonia e Integração Fisopsíquica – Editora Escuta)

 Ioga ensina ioga.
Patanjali

A calatonia é, essencialmente, vivência e prática. Assim, ao fornecer a descrição e as características do método, este capítulo se constitui apenas como referência bibliográfica, sem substituir a aprendizagem prática indispensável à aplicação. Lembremos o antigo dito de Patanjali, o primeiro codificador da ioga: “Ioga ensina ioga”.

A calatonia surgiu da necessidade prática de atender doentes em hospital de feridos de guerra, sem recursos medicamentosos e numa situação geral de grande precariedade. O toque nos pés é uma continuação da conversa reconfortante do médico ao pé da cama do paciente. O tocar é aqui a recuperação de uma parte inerente à relação terapeuta/paciente, infelizmente bastante esquecida hoje. Nessa vivência inicial, o dr. Sándor observou os efeitos que se produziam nos pacientes, com vários graus de alívio do desconforto e da dor, e foi aprimorando seu método. Relacionou essa experiência a princípios da medicina psicossomática e a princípios filosóficos pelos quais pautava seu trabalho e sua vida, como será apresentado nos capítulos seguintes.

A calatonia foi se desenvolvendo até constituir um método de terapia que compreende a técnica de trabalho corporal, a postura do terapeuta e a visão de homem subjacente ao contato, à avaliação e ao tratamento do paciente. Por isso, a preparação do terapeuta — primeiro com sua formação universitária em curso na área da saúde e, depois, com a formação especializada em algum dos diversos cursos e grupos mantidos por discípulos de Sándor — é considerada fundamental, para que o atendimento não seja mera reprodução da técnica, mas uma inserção do terapeuta no método.

Para aplicar a calatonia, toca-se de forma muito leve — “como alguém que quisesse segurar uma bolha de sabão” — as falanges distais dos dedos dos pés, usando para isso os dedos correspondentes das mãos. A seqüência médio/indicador/ anular/mínimo/hálux corresponde à hierarquia dos elementos terra/água/fogo/ar e sua síntese (tal como explicado no capítulo sobre a astrologia). Em seguida, toca-se a sola dos pés em dois pontos: logo abaixo do arco plantar e logo acima do osso calcâneo. O oitavo toque ocorre sustentando-se o calcanhar e ao redor dos maléolos. Depois, toca-se o início da “barriga da perna” na convergência do tríceps sural.

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O professor Sándor expôs em seu livro Técnicas de relaxamento a origem do termo “calatonia”. Segundo Sándor, em grego o verbo khalaó significa “relaxação” e também “alimentação”, “afastar-se do estado de ira, fúria, violência”, “abrir uma porta”, “desatar as amarras de um odre”, “deixar ir”, “perdoar os pais”, “retirar todos os véus dos olhos”. É interessante notar que, com essa observação concisa, como era de seu feitio, Sándor apontava para a consideração da calatonia como um método amplo e relacionado a aspectos da psicologia profunda.

Calatonia significa ainda, literalmente, “tônus adequado”, o que traduz de forma concreta os efeitos observados com esse relaxamento. A observação e o relato desses resultados têm sido efetuados por um grupo de algumas centenas de terapeutas ao longo de mais de cinco décadas. A adequação do tônus, também denominada por Sándor de “recondicionamento fisiopsíquico”, pode ser descrita em três níveis: físico, emocional e mental.

  • Nível físico: Relaxamento muscular, descontração muscular, regulação de diversas funções vegetativas, como: respiração, circulação sanguínea e linfática, batimentos cardíacos, funcionamento visceral, temperatura e pressão arterial.
  • Nível emocional: Correspondente relaxamento e regulação do “tônus afetivo”, isto é, reorganização das emoções carregadas de forma desequilibrada por acontecimentos cotidianos e pelos diversos níveis de conflitos inconscientes.
  • Nível mental: regulação do “tônus mental”, com eliminação dos diversos conteúdos mentais espúrios, condicionados pela exposição diária a enorme quantidade de estímulos, e, em nível mais profundo, superação das categorias mentais condicionadas pela educação e cultura vigentes.

Todos esses três níveis da vivência humana incluem aspectos considerados “inconscientes”. No nível físico, as funções corporais descritas são funções do sistema nervoso vegetativo ou autônomo, isto é, independente do comando da consciência. Aqui se pode constatar como a vivência do ser humano é, básica e essencialmente, inconsciente. Por exemplo, se não respiramos, logo morremos, mas quem comanda essa primordial função é o sistema nervoso autônomo.

Em paralelo, nossas emoções e sentimentos têm preponderantemente um componente inconsciente, isto é, não estamos conscientes dos aspectos principais dessas emoções e sentimentos.

O mesmo vale para o nível mental: o reequilíbrio de todo o nosso sistema fisiopsíquico realiza-se fundamentalmente no nível inconsciente, e, por isso, as técnicas corporais de relaxamento e toque têm efeito reorganizador mesmo que o contato e a troca se dêem no nível corporal, sem a participação do verbal. Logicamente, quando o nível verbal sintetizador e construtivo é possível, ganha-se um grau a mais de consciência, fator importante no desenvolvimento humano.

Como ilustração da troca entre terapeuta e paciente, lembremos o esquema empregado por Jung e por Guggenbuhl-Craig para representar essa relação — com os planos consciente x consciente, consciente x inconsciente e inconsciente x inconsciente —, quando ambos participam e se movem naquele organismo maior de que são parte.

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O esquema representa a relação terapeuta/paciente nessa visão, na qual o nível consciente é fundamental. Por exemplo, há que haver adequado contato, contrato, setting. Mas o nível inconsciente está sempre presente — se bem que esse mesmo enunciado já demonstra nossa incorreção de linguagem, oriunda da nossa inflação egóica. Isso porque somos nós que estamos imersos sempre no inconsciente, ou seja, não é possível à limitada consciência abarcar o todo da nossa experiência, nem física (lembremos da respiração), nem psíquica.

O velho Freud já apontara esse fato em 1900, mas até hoje nossa consciência resiste a assimilá-lo, distorcida por condicionamentos culturais que sustentam a ilusão fantasiosa de que nossa pequenina porção consciente e racional pode entender e controlar a personalidade inteira. É uma grave ilusão. O homem não pode controlar a natureza, física ou psíquica; não pode nem mesmo compreendê-la totalmente. Ele é parte dela e funciona de acordo com suas leis. Como disse Jung, é o inconsciente que determina se vou conseguir pronunciar (ou escrever) a próxima palavra. Essa ilusão do homem contemporâneo tem conseqüências sérias; a natureza física e psíquica se ressente de sua ação unilateral e predatória e exibe os desequilíbrios daí resultantes.

Por isso, a reintegração do homem com a natureza é uma das balizas do nosso trabalho. Essa reaproximação do paciente com sua natureza é propiciada por vários elementos. Deitar-se, despojar-se das roupas, fechar os olhos já configura simbólica e fisiologicamente uma alteração do ritmo de funcionamento corpóreo e psíquico. Entregar-se ao toque proposto e deixar as percepções serem vivenciadas permite experienciar os conteúdos das camadas mais interiores. E o estímulo do toque, ao trazer descontração muscular, reequilíbrio das funções respiratória, circulatória e outras, complementa a criação do campo fisiopsíquico propiciador dessa experiência.

Nas formas em que atuamos — calatonia, reajustamento dos pontos de apoio, toques sutis —, o trabalho proporciona uma peculiar comutação fisiopsíquica que conduz a um estado alterado de consciência, a uma espécie de mudança na faixa de funcionamento do ego na vigília cotidiana, com sensações e imagens próprias dessa outra faixa. Isso permite experienciar conteúdos distintos dos habituais. Essa vivência ajuda no descondicionamento do ego, ajuda a ultrapassar aquelas categorias de pensamentos, sentimentos e sensações padronizados e inculcados pela cultura de massa em que estamos envolvidos.

Há aqui uma possibilidade de contato mais profundo e autêntico com aspectos do nosso Eu inconsciente, o centro da personalidade denominado Self por Jung. Essa reconexão é fundamental para que o homem possa orientar seu trajeto de individuação no sentido de realizar o potencial presente no Self, no Si-Mesmo, encoberto e distorcido em nossa cultura pelos condicionados e desequilibrados desejos e aspirações do ego. O ego quer realizar-se, mas o Self quer realizar-se, isto é, cumprir a destinação daquele organismo individual de participar harmoniosa e integradamente d’Aquele Organismo maior de que faz parte. A psique consciente do homem atual padece de uma deformação característica da nossa cultura: a inflação do ego, que, exorbitando de sua função original, almeja controlar e determinar o processo do Ser.

Os objetivos da calatonia podem também ser descritos nos seguintes aspectos:

  • Contato consigo mesmo
  • Reconexão com o organismo maior de que fazemos parte
  • Instrumento de profilaxia
  • Instrumento de diagnóstico
  • Instrumento de interação diferenciada e profunda com o outro

Contato consigo mesmo — Contato primeiramente com as sensações corpóreas, cuja percepção é facilitada pelo relaxamento e desligamento dos estímulos externos. Em uma camada mais profunda, conforme os diferentes planos de consciência contatados, conexão com aspectos do que Jung denominou self, ou centro interior da psique (ou Eu Superior, na denominação de alguns sistemas espiritualistas). Através da ativação da função intuitiva, por meio do toque, isto é, de sua oposta função sensação, cria-se um estado fisiopsíquico propiciador de estado de consciência que facilita o acesso a níveis mais profundos da psique.

Esses níveis foram descritos por Jung através do conceito de inconsciente coletivo. O importante biólogo Rupert Sheldrake descreveu também níveis inconscientes de comunicação através do conceito de campos morfogenéticos. Em outra abordagem e com diversa linguagem encontra-se a noção dos diversos planos da consciência na teosofia, contatados e transmitidos conforme o desenvolvimento do aspirante ou discípulo no seu processo de desenvolvimento pessoal.

Reconexão com o organismo maior de que fazemos parte — Reconexão em nível físico, social, de espécie, de planeta e cósmico: hólos, “total, completo, inteiro”.

Instrumento de profilaxia — ao ajudar a equilibrar as funções físicas e psíquicas, bem como ao propiciar auto-observação mais profunda e discriminada. Isso permite ao paciente contatar e, se necessário, lidar com sensações de dores ou desconfortos físicos não percebidos na atividade costumeira do cotidiano.

Instrumento de diagnóstico — para o terapeuta, que também tem seus canais de percepção (sensação e intuição) ativados, numa observação diversificada de seu paciente. Esse é um aspecto difícil de descrever teoricamente, necessitando ser vivenciado, para que o terapeuta perceba como sua compreensão intuitiva do paciente pode ser dinamizada através do trabalho corporal. Alunos iniciantes surpreendem-se com o retorno do paciente, quando este afirma que o terapeuta o tocou exatamente onde doía ou onde era necessário, ou que o terapeuta abordou depois do trabalho corporal exatamente a área mais significativa naquele momento.

Instrumento de interação diferenciada e profunda com o outro — a troca, na calatonia, é dialética; terapeuta e paciente tocam-se dentro de um campo que confronta, intercambia, integra e transcende os dois, constelando aquela energia de síntese que Jung chamou de função transcendente, provinda do eu inconsciente, e que o dr. Sándor denominou de terceiro ponto.

Com o conceito de terceiro ponto, Sándor propunha que o terapeuta procurasse visualizar ou sentir, da forma mais propícia para si e para o paciente, aquele tertius que transcende a dicotomia de dois seres humanos que se contatam e que integra os dois num dinamismo mais global que os contém.

Para a realização deste trabalho e seus objetivos, é necessária uma atitude interna do terapeuta de entrega ao processo e soltura em relação a idéias e intenções preconcebidas. Depois de uma formação adequada no método e com a devida supervisão, o terapeuta vai aprendendo vivencialmente a desligar nesse momento seus canais de avaliação (funções pensamento e sentimento), por demais condicionados social e culturalmente. Funciona melhor aqui o eixo sensação/intuição, ao observarmos o paciente, “ouvi-lo” com a ponta dos dedos e deixar que as impressões e direções vindas do inconsciente através da função intuitiva configurem o trabalho a ser realizado.

Como conseqüência dessa interação e dessa prática, com o tempo foram sendo “consteladas” no trabalho de Sándor e seu grupo novas formas de trabalho corporal. Assim, surgiram os chamados “toques sutis”, nos quais, segundo os mesmos princípios e a mesma metodologia, usam-se outras técnicas para atingir objetivos análogos.

Há o trabalho com outras formas de calatonia (mãos e cabeça); o trabalho com “descompressão fracionada”; o trabalho com grandes e pequenas articulações; o trabalho com opostos (membros superiores/inferiores, cintura escapular/pélvica, pés/cabeça, lados direito/esquerdo); o trabalho com a coluna e seus centros nervosos e energéticos, e muitos outros. O contínuo desenvolvimento desses trabalhos e da consciência dos grupos em relação à nossa prática e às grandes Idéias que fundamentam essa prática comprova o papel da calatonia como geradora e produtora de conhecimento.

Nesse trabalho, a busca do descondicionamento é fundamental, e por isso o empenho em “desligar-se” das vivências e dinamismos cotidianos, para perceber outra camada de conteúdos da psique. O tipo de toque que adotamos busca essa característica não condicionada, não habitual, mais arcaica — por exemplo, o toque nos pés ou na coluna, a intensidade sutil. São empregadas também formas grupais, com configurações que evocam o arquétipo — o círculo, as mãos dadas, a dança, a emissão de sons primordiais (como o A).

Dessa forma, a calatonia tem sido usada como método coadjuvante em Terapias Psicológicas, Médicas, Fonoaudiológicas e Fisioterápicas, bem como Ocupacionais e Corporais. Também é utilizada na Educação Física, na Pedagogia e em várias formas de trabalhos grupais. Em condições em que a proposta, o setting e a preparação do terapeuta se mostravam adequados, não foram observadas contra-indicações. É possível o trabalho com psicóticos (embora em certos casos seja observada menor responsividade), bem como com pacientes sob medicação psiquiátrica; de qualquer forma, os resultados observados favorecem a tentativa. Em situações pré e pós-operatórias e hospitalares em geral, a Calatonia e os Toques Sutis podem ser recursos de grande valia.

Pode-se caracterizar o objetivo da calatonia como geral e inespecífico, em contraste com trabalhos corporais que têm objetivos específicos — focados —, como ocorre na Fisioterapia e em outras abordagens de terapia corporal. Não há expectativa quanto a resultados predeterminados programáveis, mas a observação, por mais de cinco décadas, da aplicação do método em milhares de pacientes mostrou resultados análogos aos descritos aqui, dentro de um quadro de reequilíbrio físico e psíquico, favorecimento da consciência, autopercepção e autodirecionamento, no sentido de realização adequada de potencialidades (individuação).

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Bibliografia

Sándor, Pethö. Técnicas de Relaxamento. São Paulo: Vetor.

Delmanto, Suzana. Toques Sutis. São Paulo: Summus

Farah, Rosa. Integração Psicofísica. São Paulo: Robes